quinta-feira, 29 de abril de 2010

Joaquim, Jorge e outros heróis


“Infeliz o povo que não tem heróis”. A frase, quase proverbial, é de Bertolt Brecht, na peça Galileu Galilei, escrita em 1939.Já fomos mais felizes: nos livros escolares conhecíamos um certo Joaquim José da Silva Xavier que, estampa similar a Jesus Cristo, era um ícone de valores como independência, justiça e “liberdade, ainda que tardia”. Liberdade inclusive para o desenvolvimento das manufaturas tolhidas, naquele Brasil nascente do final do século XVIII. De solidariedade também: “sempre preterido nas promoções a que tinha direito, uni minhas aflições às do povo, que eram maiores, e foi assim que a idéia de libertação tomou conta de mim”, dizia o alferes, relembrado didaticamente nas semanas em torno do 21 de abril.Já fomos também mais místicos: São Jorge, enfrentando o Dragão da Maldade, enraizou-se como mito no imaginário popular, tradução generosa do cruzadismo medieval. Símbolo da rebeldia, recusando a cooptação do imperador Diocleciano e do paganismo romano no terceiro século da nossa era, Jorge, da Capadócia – atual Turquia – e dos corações simples da nossa gente, pagou com o martírio o preço da sua coerência, ao não aceitar a adoração de falsos deuses e reafirmar sua fé contra a dominação e a exclusão.Por isso, aproveitando as oportunidades que o calendário nos dá, é preciso denunciar os fundamentos culturais da nossa crise civilizatória, onde a lógica privatista e individualista valoriza a saúde do capital e despreza a doença da sociedade, contaminada pelo desemprego estrutural e pela destruição acelerada das condições de vida no planeta. Mas mesmo nestes tempos de pragmatismo absoluto a necessidade de alguma simbologia continua: aí está messianização do mercado e o fetiche do caminho único na economia. Assim, proclama-se herói o grande empreendedor dos negócios, capitão das usinas que hão de fazer deste país um imenso canavial, no processo de reprimarização das plantations do agro-combustível. Tiradentes modernos, produtivistas como ele, mas sem grilhões, masmorra e patíbulo, reservados aos bóias-frias...Há outras ofertas de ídolos, menos sofisticados: na ordem social do consumo contínuo como regra de vida, e da busca do prazer como condição da felicidade, herói é também de ocasião. É o anônimo que, massificado na telinha, conquista visibilidade, prestígio e dinheiro, com o investimento de seus atributos físicos e sua capacidade de seduzir. É a estrela que povoa o imaginário de milhões, com a atratividade das suas esculpidas formas e da eterna juventude. Belos como a imagem de um santo guerreiro no seu cavalo branco, inalcançáveis como seu reflexo na lua...A insuficiência desses pseudo-valores fica patente num ambiente de mal-estar crescente, de vazio de sentido, de ânsia pela recuperação de antigas referências humanistas. O pós-tudo revela-se, pouco a pouco, um neo-nada, e renasce a busca do significado de figuras e momentos históricos. Assim, de maneira quase imperceptível, uma nova cultura surge, como resistência, no mundo do trabalho, nas escolas, nas igrejas, nas artes, ali onde há compreensão de que os modelos atuais de organização política, social e econômica da vida humana no planeta chegaram ao esgotamento.Nesse cenário de luz nas trevas cabe o contraponto de Brecht na mesma antológica peça, reescrita em 1945, sob os escombros da bomba atômica: "infeliz do povo que precisa de heróis!". Bebendo na fonte da ação emancipatória de Tiradentes e do lendário combate do bem que Jorge travou, uma rede cidadã vai sendo tecida, para garantir nossa sobrevivência como Nação e como espécie.


Chico Alencar é professor de História e deputado federal (PSOL/RJ)

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